Avaliação da Educação Superior no Brasil nas últimas duas décadas: a permanência do Estado Avaliador na busca incessante por qualidade

Este texto tem como objetivo trazer uma breve retrospectiva sobre o processo de avaliação da educação superior no Brasil nas últimas duas décadas a fim de fazer uma reflexão sobre a continuidade da busca pela qualidade.
A década de 1990, no Brasil, foi marcada pela implantação da cultura de avaliação da qualidade das instituições de ensino com base nos princípios neoliberais, fundamentada em resultados e rankings, configurando-se, assim, o Estado Avaliador. Em 1993, foi implantado o Programa de Avaliação Institucional (PAIUB) voltado para as instituições públicas e tinha como objetivo aperfeiçoar o desempenho acadêmico dessas instituições a fim de prestar contas à sociedade. A ideia era que esse programa fosse uma ferramenta para o planejamento e a gestão da educação superior pública. Por motivos diversos, logo foi descontinuado.
Poucos anos mais tarde, com as reformas educacionais de 1996, foi iniciado, pela Secretaria de Educação Superior (SESu) do Ministério da Educação (MEC), o processo avaliativo periódico, relacionado à regulação de cursos, com base na Portaria 181/96, em substituição ao trabalho realizado, até então, pelo Conselho Federal de Educação (CFE). Um ano mais tarde, esta foi substituída pela Portaria 641/97 que elencava os elementos mínimos necessários para organização dos projetos pedagógicos dos cursos e, a partir destes, organizada a avaliação das condições mínimas para autorização de novos cursos em faculdades integradas, faculdades, institutos superiores ou escolas superiores. Nessa mesma época, esses parâmetros começaram a ser utilizados para a avaliação de renovação de reconhecimento de cursos a partir dos resultados do Exame Nacional de Cursos (ENC). Essas avaliações eram, a princípio, voltadas para as instituições privadas e realizadas por Comissões Verificadoras (CV) organizadas pela SESu a partir de seu corpo de consultores, geralmente professores provenientes de universidades federais, indicados sem critérios públicos de seleção. A ideia desse processo regulatório foi instituída, então, há pelo menos 20 anos e, com ele, o Estado tem buscado estabelecer indicadores para atestar a ‘qualidade’ das instituições de ensino.
Nesse sentido, as políticas de controle e avaliação da educação superior, até o final de 2001, tinham cunho de aferição da qualidade do ensino e de prestação de contas à sociedade a fim de se justificar a necessidade de investimentos, principalmente nas universidades públicas. Dessa forma, a ideia de privatização da educação superior e da expansão do mercado educacional privado era notória, sempre fundamentada na lógica empresarial, estabelecendo-se, assim, uma relação entre os resultados das avaliações e a eficácia e eficiência dessas 'empresas' a partir dos 'padrões de qualidade' alcançados nas avaliações. A diferença entre os serviços ofertados por essas instituições era um elemento importante e, consequentemente, o ranking entre elas inerante a esse processo. Nessa época, além das visitas de avaliação in loco pelas CV, o Exame Nacional de Cursos (Provão) era realizado anualmente, aplicado aos concluintes dos cursos de todas as áreas do conhecimento e era o instrumento utilizado para ranquear essas instituições de ensino. De lá para cá, desde a proposta de mudança política do início do Século, temos vivenciado muitas mudanças, tentativas e erros. Todavia, veremos que a ideia de controle e de melhoria da qualidade do ensino esteve sempre presente nesse processo.
Em 2002, um grupo de professores especialistas em avaliação das universidades federais com experiências diversificadas nessa área e com o PAIUB iniciou os debates com a comunidade acadêmica para revisar os processos avaliativos com fins regulatórios e sugerir a implementação de um sistema ou de uma política pública que pudesse avaliar cursos e instituições integrantes do sistema federal de ensino por meio de instrumentos diversificados. Após amplo debate e discussões com a comunidade acadêmica, em 2004, foi instituído o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), e, com ele, o ENC (Provão) foi extinto e novos instrumentos de avaliação foram implantados. O Sinaes tem o objetivo de promover o autoconhecimento das instituições e avaliá-las considerando a diversidade do sistema. Para tanto, foi composto, inicialmente, por três  instrumentos de avaliação: a Avaliação das Instituições de Educação Superior (avaliação Externa e autoavaliação institucional), o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), e a Avaliação dos Cursos de Graduação (ACG). O Enade, diferentemente do Provão, é aplicado alternadamente nos cursos que compõem seus três ciclos, organizados por área de conhecimento. Essa nova perspectiva, fundamentada nas concepções formativa e dinâmica de avaliação, tinha como objetivo conhecer as instituições de ensino em todas as suas dimensões: ensino, pesquisa, extensão, infraestrutura, comunicação com a sociedade, financeira, planejamento, gestão e avaliação, a fim de acompanhar seu ‘desempenho’, conforme artigo 1º da Lei nº 10.861/04. As comissões Próprias de Avaliação (CPA) tomaram força, ficando responsáveis pela autoavaliação das instituições e passaram a subsidiar os processos de avaliação externa, juntamente com os demais instrumentos do sistema. O Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) passou a ser responsável pela aplicação dos instrumentos do Sinaes. A intenção era promover uma visão diferente da existente até então, no sentido de romper com o modelo aplicado até aquele momento.
Nessa época, depois de debates e de manifestações  de alguns órgãos representativos das instituições privadas de ensino, alguns de seus professores doutores passaram a integrar as comissões de avaliação in loco. Mais tarde, foi implantado procedimento específico para selecionar esses especialistas a partir de um banco de dados organizado pelo Inep. Esse novo procedimento passou a aceitar professores mestres e doutores, possivelmente, em razão da demanda de avaliações, cada vez mais frequentes.
De acordo com a legislação em vigor, as instituições que não tiverem desempenhos positivos nas avaliações do Sinaes são acompanhadas pelo MEC e, para não prejudicar a sociedade, quando isso ocorre, são abertos processos de supervisão, com intervenções e sanções. Desde sua implantação, o Sinaes não deixou de lado a noção de subsidiar a melhoria da qualidade das instituições de ensino e de orientar a expansão do sistema, e, dessa forma, não abandonou por completo os princípios anteriores à sua existência.
A nova política avaliativa não conteve o crescimento da educação superior privada, embora algumas sanções tivessem sido aplicadas a algumas instituições, e o sistema continuava a se expandir. Novas faculdades foram credenciadas e novos cursos superiores foram abertos, mas, diferentemente das políticas anteriores, novas instituições públicas iniciaram suas atividades a partir da implementação de políticas de expansão no âmbito do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). O Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) teve a função de diminuir a evasão dos estudantes nessas universidades. Para atender à demanda da sociedade pela educação superior, todavia, era inegável a necessidade de manutenção e incentivo às instituições privadas. Com isso, surgiram políticas para estabelecer parceria entre o público e o privado, como, por exemplo, o Programa Universidade para Todos (PROUNI). Em 2001, o Fundo de Financiamento do Estudante do Ensino Superior (FIES), criado em 1999 em substituição do Crédito Educativo, cujo objetivo é financiar cursos de graduação não gratuitos, foi ampliado e, desde então, suas regras têm sido, constantemente, alteradas.
A expansão do Sistema Federal de Ensino gerou maior volume de instituições e de cursos a serem avaliados e a com o aumento da demanda do Sinaes, depois de três anos, seus procedimentos e instrumentos avaliativos começaram a ser revisados. Em 2008, sem aviso prévio e sem debates com a comunidade, houve mudanças no Sinaes e instituídos dois novos ‘indicadores de qualidade’ da educação superior: o conceito Preliminar de Cursos (CPC) e o Índice Geral de Cursos (IGC). A partir de então, esses conceitos provenientes do Enade tornaram-se os principal instrumentos regulatórios da educação superior. Com isso, algumas concepções e diretrizes iniciais do Sinaes tiveram que ser revisadas e, a partir de então, novos procedimentos começaram a ser adotados e modificados anualmente.
Em 2009, o Enade, antes aplicado a uma amostra de estudantes, passou a ser censitário. Poucos anos depois, deixou de ser aplicado aos ingressantes dos cursos e passou a ser realizado somente com a participação dos concluintes. O conceito dos ingressantes passou a ser calculado a partir da nota dos participantes do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), diminuindo, assim, os custos com a aplicação do certame. Em 2014, quando o Sinaes completou dez anos, o balanço do sistema era positivo no que se refere à quantidade de cursos e instituições avaliadas. Ao longo dessa década – 2004 a 2014 -, os instrumentos de avaliação de curso e de instituição passaram por diversas versões e novos ‘indicadores de qualidade’ foram sendo inseridos nesses instrumentos, justificados pelo discurso de que se uma porcentagem alta de instituições atinge o conceito máximo em um indicador, este deve ser substituído por outro(s) a fim de que as instituições não cessem de promover seu crescimento em busca da ‘qualidade’. Guardadas suas proporções, o Estado Avaliador não deixou de existir.
Desde a implantação do Sinaes, em 2004, a mídia tem promovido o ranking das instituições a partir da publicização dos resultados dos ‘indicadores de qualidade’ da educação superior pelo MEC e as instituições privadas têm utilizado esses resultados em suas propagandas, não deixando de lado o caráter competitivo entre essas ‘empresas’. Não há dúvidas de que a ausência de um sistema de avaliação e acompanhamento poderia ter gerado consequências graves para educação superior em razão de muitas dessas instituições estarem preocupadas somente com o lucro e não com o processo de ensino. A regulação e a supervisão da educação superior trouxeram benefícios ao sistema e essas instituições buscam aprimorar-se constantemente. Nesse sentido, as instituições privadas adaptam-se, com frequência, às novas regras, alteradas anualmente desde 2008, a fim de obter boas ‘notas’ e, assim, evitar supervisão por parte do MEC. As instituições públicas, também avaliadas pelo sistema, parecem buscar atender a alguns indicadores do processo regulatório, sem, contudo, considerar esses resultados para o acompanhamento de suas atividades.
A mudança política desde setembro de 2016 tem levantado novas expectativas. Sabe-se que a legislação da regulação da educação superior está sendo revisada desde dezembro. Resta-nos aguardar as mudanças, mais uma vez não debatidas e ou compartilhadas com a comunidade acadêmica, e esperar que o Sinaes não acarrete perdas para a educação superior.

Mara Lúcia Castilho
Doutora em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB)

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